quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A Ignorância ao Alcance de Todos


Transcorria o ano de 2006. Nesta época eu trabalhava na maravilhosa cidade de Guarapari/ES. O tempo extra após o corrido almoço era utilizado em eventuais caminhadas na Praia das Castanheiras. Outra ótima opção era percorrer alguns sebos próximos ao centro da cidade. Eram dois imensos prazeres.

Com pouco investimento é possível sair destes sebos com obras sensacionais, ou não. O fato é que num dia feliz encontrei um livro com o curioso título: A Ignorância ao Alcance de Todos – Cartilha de Analfabetização Sem Mestre, escrito por Nestor de Holanda e publicado em 1962 pela Editora Letras e Artes.

Considerando-se que naquele dia meu tempo estava esgotado, não tive muito tempo para folhear o livro e descobrir o que pretendia o autor, que aliás eu desconhecia. Porém o baixo investimento demandado, cinco Reais, me pareceu valer à pena correr o risco de fazer um mau negócio. Assim, optei pela compra.

O livro é um grande registro social do início da década de 60. Um período de elevada efervescência cultural e política. O autor, de forma sarcástica propõe a Campanha Nacional de Analfabetização com o objetivo de “luta tenaz contra os que não são analfabetizados, para preservação desse fabuloso ‘status’ social.” Com inteligentes comentários sobre a língua portuguesa o autor vai contando suas histórias sobre as personalidades daquela época. Abaixo alguns trechos da obra:
  • “Quando Leonardo Vilar regressou da França, depois da estrondosa vitória de ‘O Pagador de Promessas’, em Cannes, um vespertino carioca o chamou, em título, na primeira página, ‘protagonista principal’. Mostrei a notícia a um crítico de cinema. E ele:
    - Ainda não assisti ao filme extraído da peça de Dias Gomes. Por isso, não sei se o Vilar é mesmo o protagonista principal."
  • “O meio mais prático de escrever certo e de modo claro é fugir dos gramáticos. E se puder acrescentar a isso algum talento de não dizer coisa com coisa, melhor, pois ganhará fama, popularidade, dinheiro.
    Aí está Ibrahim, o gênio da Analfa. Um dia deu notícia sobre a casa em que nasceu Ruy Barbosa, em Petrópolis. Outro dia, ao visitar, na Inglaterra, o Castelo de Windsor, falou em manuscritos datilografados. Isso é perfeição. Técnica muita.”
  • “Porque a melhor forma de qualquer um manter-se isento de impostos ainda é não pensar no que os outros dizem de nós. Os leitores riem, mas vamos vivendo, enriquecendo.
    E esta forma consiste em acreditar no princípio de Moro-Giafferi:
    ‘Prezado senhor, a metade dos leitores que viram este jornal não viu este artigo; a metade dos que viram o artigo não o leu. A metade dos que o leram não o compreendeu. A metade dos que o entenderam não acreditou. E a metade dos que acreditaram não tem importância’.”
  • “Nos bancos, os homens que assinam cheques todos os dias usam, hum, treis, cincoenta, catorze e outras grafias que podem parecer flaviocavalcantismos.
    Têm medo de que, antes de um, escrevam ‘cento e’, ‘quinhentos e’ ou ‘mil e’.”
    [...]
    “Mostra que há dois caminhos na vida: saber gramática ou ter dinheiro no banco. Aconselho o último. Porque ainda não houve erro de português que impedisse um cheque de ser pago.”
  • “Há os que defendem a crase nos casos de ambigüidade.
    Exemplo de ambigüidade: uma briga entre Luz Del Fuego e qualquer de suas cobras.
    - Quem venceu? – pergunta um torcedor.
    - Ela.
    - Qual das duas?
    - ‘Matou à mulher a cobra’.
    Entende-se que a jibóia ganhou de Luz Del fuego. Mas a mesma resposta, mudando a crase, toma outro sentido:
    - Quem venceu?
    - Ela.
    - Qual das duas?
    - ‘Matou a mulher à cobra’.”
  • Sobre Roquete-Pinto: “Quando diretor da antiga Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, ouvia, certa noite, o saudoso Francisco Alves cantar:
    - ‘Eu quero uma mulher bem nua, bem nua’ etc.
    Telefonou para a emissora e mandou suspender o programa.
    No dia seguinte, o seresteiro foi falar com ele:
    - Dr. Roquete, estou meio aborrecido, porque o senhor cortou minha audição.
    - Fui obrigado, Chico.
    Disse por quê:
    - Uma mulher bem nua todos nós queremos. Mas não se pode anunciar isso pelo rádio”.
  • “Outro cantor famoso é o Black-Out. O compositor Peterpã foi ensinar-lhe samba, cuja letra dizia:
    - ‘Com muita satisfação’ etc.
    Black-Out começou a cantar.
    - ‘Com muita sastifação’…
    - Não é sastifação, gritou o autor. É satisfação.
    Blackout se defendeu:
    - Ora essa, Peterpã! Comecei a aprender o samba agora e você já quer que eu saiba a letra?!”
  • Outra de Black-Out: “Teria ele de atuar num programa, a cuja estréia o anunciante iria comparecer. A letra de seu samba era:
    - ‘Olga!... Oh, Olga!...’ etc.
    No ensaio, Black-Out foi logo trocando as bolas:
    - ‘Orga!... Oh, Orga!...’
    Mario Brasini, diretor do programa, protestou:
    - Não é Orga, Black-Out. É Olga. Diga comigo: ‘Olga, Olga, Olga...’
    Ele treinou e acabou dizendo certo.
    Na hora da irradiação, Brasini estava preocupado, temendo que Black-Out repetisse o Orga diante do anunciante. Quanto a orquestra atacou:
    - ‘Olga!... Oh, Olga!...’
    Brasini respirou aliviado. Mas no verso seguinte:
    - ‘Estou de forga...’”
  • “Aqui é verdade, ficamos embasbacados com muitos idiomas estrangeiros. É conhecido, por exemplo, o episódio do alfaiate cearense que se instalou em Londres, com uma grande tabuleta na porta do estabelecimento: ‘Mr. Paiva’.
    Os fregueses só o chamavam ‘Peiva’.
    Ele trocou a tabuleta para ‘Peiva’.
    Os fregueses passaram a chamá-lo ‘Piva’.
    Ele mudou para ‘Piva’.
    E, aí, voltou a ser ‘Paiva’.”

Ainda que as citações sejam de personalidades da época, o que pode dificultar sua total compreensão pelo leitor mais jovem, o texto apresenta um humor brincalhão que ri de si mesmo e que vai além de seu tempo. Terminei o livro num fôlego só. Somente após o final da leitura busquei a internet para saber mais sobre o autor, aquela pessoa que tanto me fez rir de suas histórias e que tornara-se meu amigo. Porém as notícias não foram boas. Embora tenha sido um autor de sucesso de vendas, seus livros não estavam com edições disponíveis. E, principalmente, a pior de todas as notícias: o autor falecera em 1970, ou seja, há 36 anos.


Sei que é estranho explicar, mas baixou um clima de perda enorme. Tive a nítida sensação de que a morte de Nestor de Holanda tinha acontecido no dia anterior. Não me contive e entrei em contato, via e-mail, com um de seus filhos a quem declarei minha admiração pela obra de seu pai. Sem dúvidas ele entendeu o que eu estava sentindo. Inclusive me informou que a obra de seu pai estava em fase de digitação a fim de futuros relançamentos, o que seria o máximo.


E pensar que seu livro seguinte teve o título de “O Puxa-Saquismo ao Alcance de todos”...

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